Bar, restaurante e galeria de arte ficam ‘ilhados’ em meio a construções de prédios em SP

Casas sendo demolidas para construções de prédios são um cenário que se tornou cada vez mais comum em bairros da capital paulista. A sensação é a de que a cidade virou um canteiro de obras e em toda rua tem um edifício sendo levantado.

O G1 percorreu algumas regiões da cidade e conversou com donos de três comércios que ficaram “ilhados” em meio a construções de prédios de alto padrão. Os proprietários se intitulam como “resistentes” às ofertas de construtoras que conseguiram comprar a maioria dos imóveis ao redor.

Em um deles, no bairro Ipiranga, o dono de um restaurante contou à reportagem que chegou a receber cinco ofertas para vender o imóvel onde funciona o comércio desde os anos 70. “Aqui eu sou completamente apegado. Não tem como vender. É mais que o dinheiro. Eu vou ficar ilhado, né? Mas fazer o que, cresci aqui e não vou sair”, ressaltou Felipe Américo Mineiro.

Ainda no Ipiranga, próximo ao restaurante, o Bar do Paraíba também ficou ilhado no meio de uma construção. A proprietária do bar está no local há 27 anos. Nos Jardins, bairro nobre da capital, o mesmo aconteceu com uma galeria de arte.

Outro exemplo é o tradicional Bar Balcão, que também fica nos Jardins. Clientes do comércio até criaram um abaixo-assinado no dia 1º de julho para que o local não seja vendido e se torne patrimônio tombado. O documento alcançou mais de 6 mil assinaturas em um mês.

Desde 2014, quando o novo Plano Diretor Estratégico da cidade buscou adensar as regiões próximas a eixos de transporte público, as subprefeituras da Vila Mariana e Pinheiros (que incluem os Jardins) passaram para o topo no ranking de demolições na capital paulista.

Segundo a Secretaria Municipal de Urbanismo e Licenciamento (SMUL), as regiões que mais emitiram Alvarás de Execução de Demolição, entre 2018 e 2022, foram Vila Mariana, Pinheiros e Santo Amaro. Na região da Vila Mariana, por exemplo, foram 1.091em cinco anos.

E de acordo com dados do Centro de Estudos da Metrópole, da Universidade de São Paulo (USP), São Paulo passou a ter mais residências em prédios do que em casas em 2021. De acordo com pesquisa do Centro de maio deste ano, a capital tinha 183,7 milhões de metros quadrados de casas para 190,4 milhões de metros quadrados de prédios.

Para a arquiteta, urbanista e coordenadora do Instituto Pólis, Margareth Martiko Uemura, a demolição de quadras inteiras para a substituição por grandes torres residenciais acaba expulsando os pequenos comércios. Com isso, se diminui o uso misto (comercial e residencial) e os pequenos deslocamentos, um dos objetivos do plano.

“Isso está causando uma substituição de população que também não é desejada. A ideia é que a população que usa esse bairro permaneça, e que os usos existentes hoje também permaneçam”, disse a arquiteta.

Arte entre construções

Bar, restaurante e galeria de arte ficam 'ilhados' em meio a construções em SP — Foto: Montagem/g1

Desde 2002 na Alameda Lorena, Jardins, a galeria de arte “Passado Composto” é um dos comércios da região que decidiu resistir à especulação imobiliária.

E quem passa pela Alameda observa justamente que o espaço foi o único que permaneceu entre construções de edifícios de alto padrão. Até então, a galeria tinha como vizinhos restaurantes, um salão de beleza e lojas.

“Todo mundo nos parabenizou dizendo que fazemos parte do patrimônio do bairro e que é uma marca. Que foi bom não termos saído daqui. Os prédios não têm como deixar de construir. Mas eu acho mais charmoso para o bairro ter pequenos imóveis e prédios convivendo em harmonia. Somos resistentes”, ressaltou a proprietária Graça Bueno.

Agora, o novo empreendimento vai ficar no “entorno” da galeria, ou ela “dentro” do prédio, dependendo da perspectiva.Cida Santana e a filha Graça Bueno — Foto: Deslange Paiva/g1

A galeria foi fundada em 1988 pela antiquária Cida Santana, mãe de Graça. O espaço é especializado em móveis, arte e tapeçarias, e comercializa também peças de designers escandinavos como Bruno Mathsson, além de obras de autores contemporâneos brasileiros, como da artista têxtil Eva Soban e do fotógrafo Ruy Teixeira.

O local foi autorizado para a reedição de móveis de um dos ícones do mobiliário moderno brasileiro, o artista-designer Jean Gillon. A fundadora Cida, que atua também como designer com ênfase na criação de lustres, continua expondo seu acervo e criações na galeria.

“Gostamos do bairro e preferimos manter nosso espaço para receber nossos amigos e clientes. Nós não estávamos interessadas em mudar, até porque eu moro no bairro também. Nós analisamos algumas propostas, que foram dadas há três anos, e decidimos nos manter aqui mesmo. Tanto pelo espaço arquitetônico quanto pelo cliente habituado com o endereço e pela marca bem segmentada”, ressalta Graça.

Galeria de Arte da Alameda Lorena, Jardins — Foto: Paola Patriarca/g1

A galeria, que ficará entre prédios de alto padrão assim que as construções forem finalizadas. No momento, ela está no meio de tapumes e máquinas que trabalham diariamente.

Ao chegar ao local, Graça fez questão de mostrar à reportagem como é a experiência de entrar na galeria que acumula mais de 20 anos. E logo já afirmou: “estamos resistindo, viu? Gostamos muito daqui. Venha conhecer”.

O espaço de cerca de 400 metros quadrados é cercado de arte desde a entrada. Com vários ambientes e dois andares, o cliente entra em contato com artistas consagrados nas tapeçarias, entre eles o precursor brasileiro Genaro de Carvalho.

As obras são colocadas em quase todas as paredes. E nos ambientes há diversos lustres feitos pela fundadora.

“A gente faz exposição com frequência e as pessoas gostam do espaço. Tem também a logística de entrega das peças, dos funcionários. Isso tudo foi pensado quando decidimos não vender o espaço”.

Parte interna da galeria — Foto: Deslange Paiva/ g1

Questionada sobre a mudança na rotina desde as construções, Graça Bueno ressalta que ainda não teve grandes problemas.

“A equipe [das construções] está bem atenciosa e está se reunindo com nossa arquiteta. Por enquanto está indo tudo bem, dando para administrar. Estamos com arquitetos e advogados. O que decidimos, por ora, é evitar de receber muitas pessoas. Estamos recebendo grupos menores”.

E complementa: “Um pouco estranho ver as demolições ao lado, mas a gente acredita que vamos continuar com bastante visibilidade. Acho que vão ser bons vizinhos e vamos colaborar e praticar a boa vizinhança”.

No entanto, a reportagem reparou que uma parede interna da galeria estava com marcas de infiltração, além do barulho da obra.Galeria de arte ao lado de construções em SP — Foto: Deslange Paiva/g1